Este artigo será publicado pela "Revista Philologus",
do Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos - (CiFEFiL), em abril de 2012;
e também será apresentado no "IV Simpósio Nacional de Estudos Filológicos e Linguísticos", na Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro, entre 02 e 04 de abril de 2012.
"ONTOLOGIA DA POSSIBILIDADE"
Por Tav Beniakov
RESUMO
As discussões catedráticas, sobre o ser, geralmente baseiam-se nos 2.500 anos de tradição grega. E a linguagem filosófica quase nunca é compreendida pela população, que, em geral, acaba se conformando às abordagens mais simplórias da religião. O problema é que, desde a Patrística e a Escolástica, ocorre uma dupla dogmatização: Por um lado, ao tentar defender o conceito de “imutabilidade” do Deus cristão, a Igreja distorce o verdadeiro sentido da ontologia parmenidiana; por outro lado, quando evoca apenas as mitologias hebraicas, comete um deslize ainda mais grave: ignora completamente o valor original da língua e da cultura, forjando um personagem-divino completamente avesso ao do texto sagrado. Sob a perspectiva ontológica, este artigo demonstra que o Deus dos judeus é permanentemente “Móvel”, enquanto o Deus dos cristãos é “Imóvel”, tratando-se de seres potencialmente distintos em suas naturezas – o que evidencia uma drástica e irreconciliável contradição entre o Cânon Hebraico e o Novo Testamento. Logo, esse pequeno artigo intenta um imenso desafio: Resgatar e disseminar a Ontologia Hebraica a partir da tradução direta de algumas fontes primárias, que certamente fomentarão novas discussões na Academia. Mas, por tratar-se de uma língua completamente desconhecida à maioria dos brasileiros, também torna-se imprescindível abusar das notas explicativas, que estão repletas de informações relevantes à melhor elucidação da tradição e da tradução.
Nos livros do Tanach[1], o antropomorfismo, o antropopatismo, a mitologia, a simbologia, a profecia, a história, a linguagem e a língua desenham uma infinitude inconfundível de eventos que explicitam o imaginário hebreu e a sua firme crença na Ontologia da Possibilidade[2]. Para resgatar este primitivo conceito de Movimento e Mudança Permanentes, enquanto fatores inerentes ao ser, o artigo fundamentar-se-á, basicamente, em uma das perícopes mais importantes da Torá[3], no livro de Shemot[4], capítulo 3. E deter-se-á à análise exegética dos fragmentos 13 e 14, quando Moshe[5] obtém respostas sobre a Mobilidade e Mutabilidade da própria natureza divina – o que contraria 20 séculos de tradição cristã[6].
Em princípio, no verso 3.13, as principais versões bíblicas - em português - apresentam a seguinte fala de Moshe: “Qual é o nome dele?”. Dito desta forma, soa como curiosidade, tipo de cumprimento, ou mera introdução ao diálogo. No original, a pergunta é: “Ma shimo[7]?”. Isso quer dizer exatamente: “O que é o nome dele? / O que ele é?”. Apesar de as traduções não estarem necessariamente equivocadas, ainda assim não fornecem o sentido ontológico[8] da indagação. Porque os nomes em hebraicos não eram escolhidos aleatoriamente, por motivos estéticos, mas representavam alguma significação relevante à essência e a natureza da coisa em si. Então, em outras palavras, Moshe queria apenas compreender o primordial: “O que é o Ser?”.
Para compreender o referido questionamento, faz-se necessário visualizar um pouco do imaginário hebreu e do seu estilo literário. Assim, é justo transferir, inicialmente, a pergunta ao primeiro personagem da Torá: “O que é adam /adão?”. O nome está longe de representar apenas um indivíduo específico ou nome próprio: em suas 555 aparições no Tanach, ele também indica o gênero humano e toda a humanidade. Etimologicamente, no entanto, “adam” é o masculino da palavra “adamá[9]”: algo como um montículo de terra fértil. Metaforicamente, é a matéria-prima da criação, que foi modelada e vivificada pelo Deus-oleiro, conforme à sua imagem e semelhança . Por isso, também é através da “adamá” que o “oleiro-adam” traz à luz os seus utensílios de cerâmicas, as argamassas, os frutos da lavoura e da pecuária, e as riquezas em geral. Analogamente, “adam” tornou-se um ser-vivo[10], pensante, mutante, adaptável, com a infinita possibilidade de criar - e de se recriar - em todas as esferas da existência.
“Adam” seria apenas um “ídolo de barro” - inanimado, estático e inútil - se não tivesse interiorizado e absorvido o divino movimento do vento[11]. Em princípio, apesar da inteligência, ele tornou-se apenas um “barro-vivo”, com alma, sem nada que o diferisse completamente dos demais animais. Até que, em Bereshit[12]2.22,23, aparecem, pela primeira vez, as palavras “ish” e “ishá[13]”, quando o casal passa a ser reconhecido como homem e mulher. Foi ali que, repentinamente, por meio do “fogo[14]”, “adam” também se tornou um ser de luz[15]. Assim, o fogo-divino contido no “Ish” e na “Ishá” é alimentado por meio da נשמה / neshamá (respiração / fôlego) e pela רוח / Ruach (vento / espírito) de Deus. E isto completa a composição dos quatro elementos da natureza humana: água e terra na formação do corpo, ar e fogo na composição da alma ou espírito – todos potencialmente dinâmicos e mutáveis, agentes e reagentes, à semelhança do seu criador.
A análise minuciosa das múltiplas ideias míticas, contidas apenas no nome “adam” - ou no nome de qualquer outro personagem do Tanach - possibilita o resgate de inúmeros conceitos, paradigmas e axiomas primitivos sobre a existência. A mitologia hebraica sempre esteve povoada pelos quatro elementos, que são representações naturais de movimentos imprevisíveis e transformações continuadas, tal como num evolutivo salto quântico: o Uno-incriado tirou da água, a terra; da terra, o homem; do homem animado pelo “ar” e pelo fogo, a mulher; dos opostos homem-mulher, a unidade em outro ser; da combinação de cada novo ser com outro novo ser, milhares de infinitas possibilidades: étnicas, biológicas, simbióticas, sociais, políticas, religiosas, intelectuais, científicas, culturais, filosóficas e cosmológicas.
Inclusive, segundo a tradição judaica da Kabalá[16], a expressão שם “shem / nome” já carrega, em sua própria unidade, elementos distintos e pulsantes. Porque o ideograma shim (ש) representa o fogo; o mem[17] (מ), a água; subentendendo-se que cada ser, passível de receber um nome, também possua o antagonismo[18] como sinergia primordial da vida, visto que a combinação das diferenças atua como força propulsora de todo movimento. Porque o fogo e a água, juntos, são geradores de possibilidades harmonizantes e conflitantes, que se contradizem e se complementam, se ajudam e se atrapalham, se impelem e se repelem, se potencializam e se anulam – forçando a continuada fluidez da vida. Então, enquanto agentes e reagentes, eles promovem e sofrem – simultaneamente, e alternadamente, e em diferentes intensidades – ações imprevisíveis, sujeitas às múltiplas variações aleatórias no tempo-espaço e fora dele, tal como postulam modernamente o “Princípio da Incerteza”, de Heisenberg; e o “Efeito Borboleta”, de Edward Lorenz.
Assim também é possível exemplificar o contraditório contexto do protagonista Moshe: Ele é aquele que foi tirado da água[19] (מ) e poupado da morte; depois contemplou a sarça que pegava fogo[20] (ש), mas não queimava; e, em seguida, falou diretamente com Deus[21] (ה) sem ser consumido – esta exata ordem de inusitadas possibilidades forma a palavra Moshe[22] (משה). O ideograma he (ה), posto ao final da palavra shem / nome (שם), tal como também foi acrescentado aos nomes de Abraão[23] e Sara, é um sinal da sagrada aliança com o divino. E não é coincidência que o nome de Moshe, lido ao contrário, seja hashem[24] (השם) – o que sugere outra ambiguidade hebraica: Deus é como o homem e o homem é como Deus, sendo um semelhante ao outro.
Por isso Moshe, enquanto bom hebreu, inquiriu a Deus: “O que é você?” - ele esperava desvendá-lo por meio da revelação do nome: sua origem, sua essência, sua natureza, seu construto, sua potencialidade, sua personalidade, seu destino, seu atributo maior... À pergunta, caberia perfeitamente uma resposta usual: “fogo consumidor[25]”; “Deus de Avraham, Itzchak e Iakóv[26]”; “Senhor dos exércitos[27]”; ou alguns dos muitos títulos atribuídos a ele no próprio Tanach. Mas Deus não endossou nenhuma ideia teológica, teleológica, antropológica, mítica, idealística, étnica, moral, religiosa... Tampouco se dogmatizou em alguma absolutista e delimitadora verdade, que pudesse ser integralmente definida, compreendida, imobilizada, canonizada e reproduzida.
Ao contrário: Percebe-se, pela resposta, em Shemot 3.14, que Deus tirou a discussão do instante em questão e a lançou duplamente à frente, adiante – num vácuo de infinitas possibilidades interpretativas – num momento onde, talvez, nem Moshe, nem qualquer hermeneuta, jamais pudesse ver, ouvir, ou legitimar respostas definitivas e imutáveis sobre a natureza dele. E, tal como numa pequena fórmula-quântica - que seja capaz de apontar o tamanho e a diversidade do universo - ele apresentou a mais misteriosa, complexa, sintética e poética fórmula-verbal já concebida: “eheie asher eheie[28]” /“serei o que serei[29]”/ ou “estarei o que estarei[30]” – revelação capaz de “velar novamente” a sua infinita e atemporal pluralidade de possibilidades existenciais.
Segundo a tradução literal feita pela professora Izabela Bocayuva[31], o fragmento da Septuaginta, desde o início, apresenta-se corrompido: “Eu sou aquele que é.[32]”. Foi traduzido desta forma para o grego – num presente estático e absoluto - porque era inconcebível a ideia do ser no futuro, ou do ser em movimento. Séculos antes Parmênides já havia consolidado seu pensamento: “o ser que será”, ele ainda “não-é”. Não poderia o “ser não ser”, porque isto fere o princípio da identidade, implicando numa contradição lógica. No entanto, não ocorreu implausibilidade ontológica por parte dos hebreus, mas sim uma negligência[33] exegética: No pensamento hebreu, o verbo no modo “imperfeito[34]” - traduzido inadvertidamente para o “futuro” - jamais esteve associado à questão cronológica. O verbo mostra apenas o ser, o deslocamento do ser, a ação continuada e inacabada do ser que já existe e continua existindo: à semelhança de um caminhante caminhando, um criador criando, uma círculo circulando, um ser sendo. Diante desta singularidade linguística, e da pseudo-contradição filosófica, a resposta divina foi traduzida ao grego no tempo presente: “sou aquele que é” – conceito idêntico ao de Parmênides: “o ser é”. Mas, para a Igreja, esta declaração transmite, a ideia de um ser absolutamente pleno, distante, estático e imutável – transformando-o num paradigma contraditório à vida, à natureza, e ao Deus hebreu; e tornando-o cada vez mais distante do próprio ser parmenidiano.
Sob outra perspectiva, percebe-se que o Deus hebreu não escolheu um substantivo ou adjetivo para definir sua natureza, mas optou pelo verbo[35]. Por três vezes consecutivas, reafirmou ser ele próprio uma “ação viva em si mesma”: fluída, dinâmica e renovável. Ele se entrega enfaticamente ao continuísmo da “incompletude” e se transmuta pelo eterno movimento, ao ponto de tornar-se insondável, imprevisível e incompreensível – visto que apenas uma ação completa pode ser seguramente conhecida e avaliada. Além disso, ele também não afirmou: “estou sendo o que sempre fui” para forjar uma idêntica reprodução do próprio “eu”, numa suposta invariabilidade. Mas o Deus hebreu não poderia revelar-se como uma ação completada, passada, acabada, porque isto representaria o apagar da chama e o fim da existência. Consequentemente, tomando por base apenas o referido fragmento hebraico, ou qualquer outra perícope do Tanach, não é possível extrair ou sustentar a doutrina da “imobilidade e imutabilidade do ser”.
A frase demonstra, explicitamente, que o ser “está sendo” apenas aquilo que ele mesmo “está sendo”, de acordo com sua vontade e com aquilo que sua natureza permite que ele seja. “Está sendo” igual a si próprio, em comparativo somente a ele mesmo, numa aceitação plena e irrestrita da sua condição existencial. “Está sendo” em si mesmo, no próprio construto, sem que haja nenhum outro ser, modelo, referencial ou paradigma análogo a ele – o que o torna Único. Ele “está sendo” uma eterna “possibilidade em movimento”, tal como tudo o que criou. Por outro lado, identifica-se como o Deus dos antepassados de Moshe, garantindo certa conservação do ser: porque algo da existência sempre permanece, enquanto algo sempre se perde durante o movimento.
A mitologia hebraica concilia, em si, um pouco das ontologias de Parmênides e Heráclito: Por um lado, se assemelha ao conceito de “ser”, num presente permanente, porque o verbo é quase igual ao gerúndio, em português. Mas não é exatamente o presente, e, muito menos, imóvel, pleno, ou imutável. Mas uma ação contínua - sem passado e sem futuro – e una, como uma música tocada nota a nota, sem que jamais seja interrompida. Ou como o fogo que é sempre o mesmo fogo e, no entanto, nunca é igual a si mesmo ou a qualquer outra coisa além dele. Um misto de movimento e permanência, de pluralidade e unidade, de diferença e igualdade, de ser e não ser, Além disso, o ser que “está sendo apenas si mesmo” - gerando a si mesmo, modificando a si mesmo - e não revela o que ele “está sendo” ou em que ele está se transformando, caracteriza-se como algo intrinsecamente complexo e imperscrutável. E o que é mais instigante à razão: O ser sequer insinua se as coisas existentes fora dele - criação, vida, e movimento - são, de fato, uma sólida realidade ou torpe ilusão.
O Tanach ensina que o mundo criado e forjado – seja pela realidade ou pela ilusão - apresenta o ser como algo-vivo, vibrante, fluído. Apenas o “ídolo[36]” é considerado plenamente imóvel - o que indica sinal de impotência – e, por isso, os hebreus condenam a sua fabricação. Fabricar ídolos é o mesmo que forjar conceitos, formas ou valores por meio da imaginação e da arte. É como modelar o ouro, o barro, as ideias, ou as palavras para tentar reproduzir uma cópia vulgar da existência. Algo como petrificar e venerar somente o instante, o adjetivo, o detalhe, ou a ilusão do ser - artifício que o reduz a uma condição inanimada e ínfima. Por isso a mitologia hebraica insiste numa ontologia completamente inversa, a de que “adam” foi modelado como um ídolo para receber o sopro divino e alcançar a condição de ser: com vida, respiração, percepção, sentimento, pensamento, antagonismo, movimento, ação, mutação, imprevisibilidade, possibilidade – à semelhança do “Deus-vivo”[37].
Então, o hebreu, em sua observação empirista e concreta da vida, construiu sua mitologia pautada numa espécie de Filosofia da Natureza[38]. Somente por isso conseguiu compreender que o Deus que se faz representar pelo fogo, pelo vento, pelo verbo, pela criação, e pela vida; que fomenta todo tipo de transformações e possibilidades inovadoras; que impõe o movimento como expressão primordial do universo; não pode ser considerado “imóvel” como os ídolos inanimados. E esta conclusão[39] transcende qualquer discussão meramente filológica ou antropológica: O não-movimento dos seres representa a falência absoluta dos organismos biológicos, ideológicos, sociais, cosmológicos e divinos – constitui-se na morte definitiva de toda a existência, ou no fim de toda ilusão.
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[1] תנ''ך / Tanach - Um acrônimo que abrange os três grandes grupos de livros canônicos do judaísmo: תורה / Torá (Pentateuco), נביאים / Neviim (Profetas), e כתובים / Ketuvim (Escritos). Foram redigidos originalmente na língua hebraica (com alguns trechos em aramaico). Juntos correspondem ao que os cristãos denominaram, pejorativamente, de “Antigo Testamento da Bíblia”. Em meados do século II, a.EC, o Tanach foi traduzido ao grego (A Septuaginta – expressão oriunda do latim “Interpretatio septuaginta virorum / tradução dos setenta intérpretes" – conforme a denominou Agostinho.). E, por volta do final do século IV, da E.C, Jerônimo traduziu o Tanach ao latim (A Vulgata - abreviação de vulgata editio ou vulgata versio ou vulgata lectio / edição, tradução ou leitura de divulgação popular").
[2]O termo “Possibilidade”, apesar de fazer certa alusão inicial à “Ontologia da Mobilidade”, de Heráclito, também pega emprestado o conceito de “Movimento” da Mecânica Quântica - a fim de demonstrar que a mitologia hebraica, uma vez compreendida a partir dos textos originais do Tanach, torna-se demasiada relevante para o “resgate de uma tradição ontológica” que é capaz de encontrar eco e sustentação conceitual nos mais revolucionários campos da ciência moderna: desde a física nuclear à biologia molecular.
[3] תורה / Torá (Pentateuco), que engloba cinco livros: בראשית / Bereshit (Gênesis), שמות / Shemot (Êxodo), ויקרא / Vaicrá (Levíticos), במדבר / Bamidbar (Números), e דברים / Devarim (Deuteronômio).
[5] משה / Moshe – É o nome original de Moisés.
[6] O texto original e a ontologia hebraica foram intencionalmente ignorados pela Igreja, que preferiu adotar a tradução da Septuaginta como principal referência. A tradição cristã também sacralizou a “Ontologia da Imobilidade”, de Parmênides - e a incorporou ao seu próprio Deus - transformando-a num dos principais dogmas da teologia Católica e Protestante. Porém, atribuir tal conceito de “imobilidade” ao Tanach configura-se num sério descaso exegético e em anacronismo filosófico, conforme demonstrará este artigo.
[7] מה-שמו / Ma Shimo/ O que é o nome dele? – O sufixo “ו” (vav) no final da palavra שם (shem/nome) indica a terceira pessoa do masculino, no singular. Ainda hoje, os israelitas mantém a tradição de adotar nomes com real significado. Então, mesmo em hebraico moderno, quando esta expressão é usada no cotidiano: “מה שמך / ma shimchá? / o que é o seu nome?”, é usual simplificar a tradução para “qual seu nome?”. Mas quem conhece a língua hebraica e ouve, por exemplo, a resposta: שמי שמואל / Shimi Shemuel / Meu nome é Samuel, compreende rapidamente que há um sentido mais profundo na resposta, porque “Samuel” é um substantivo composto: שמו / shimo / nome dele, e אל / el / Deus - Ou seja: Meu nome é “O nome dele é Deus”. Poeticamente é óbvio o que está subentendido: meu nome não importa, mas o “nome dele (alusão a quem importa) é Deus” – como um testemunho público de fé, humildade e submissão.
[8] Conforme a nota anterior, era natural a significação do nome associada a um evento histórico e seu contexto. Mas para que haja algum sentido em português, os nomes próprios do Tanach deveriam ser traduzidos assim: Meu nome é “Curado por Deus” (רפאל /Rafael), meu nome é “Aquele que lutou com Deus” (ישראל/Israel), meu nome é “Tirado da água” / (משה /Moshe / Moisés), meu nome é “Barro-vivo”, ou “Tirado do barro”, ou “Vermelho” (אדם /Adam /Adão), etc. Em שמות /Shemot (Êxodo 3.13), a indagação busca sondar o que “o nome” revelaria de surpreendente sobre a natureza da existência divina. Portanto, deve-se interpretar o questionamento de Moshe diretamente sob a perspectiva ontológica: “O que significa o Ser?”.
[9]אדמה / Adamá /terra não representa a mesma terra que ארץ / “értz” (que aparece 2190 vezes no Tanach), apesar de sempre traduzi-las ao português com a mesma grafia e significado comum de “terra”. Éretz, geralmente, tem sentido de planeta; surge em oposição ao mar ou ao céu; ou como território, país, região. Em בראשית / Bereshit (Livro de Gênesis 2.5-9; 2.15,19; 3.19), “adamá” aparece somente como terra fértil, cultivável; terra do jardim do Éden; terra de onde brotam as árvores; de onde Deus cria tanto os animais quanto a humanidade. É possível que “adamá” fosse um tipo de “terra vermelha” ou “barro”, porque dela também derivam as palavras: אדם / odem (rubi), אדם / adom (vermelho); e דם / dam (sangue). No livro de ישעיהו / Ieshaiáhu (Isaías 45.9) também fica evidenciado que o חרש / cheresh (barro já cozido) vem de “adamá” (terra/argila). Mas em suas 217 aparições no Tanach, “adamá, frequentemente, está associada à fertilidade, à criação e à agricultura.
[10] Em בראשית / Bereshit / Gênesis 2.7 está escrito que “adam” recebeu a נשמת חיים / nishmat chaim (fôlego da vida / sopro da vida / respiração) e então tornou-se נפש חיה / nefesh chaiá (alma-vivente / ser-vivo). Ao ler ויקרא /Vaikrá (Levítico 17.11): כי נפש הבשר בדם / ki néfesh habassar badam (porque a alma da carne está no sangue.), pode-se compreender, numa hermenêutica mais moderna, que quando “adam” recebeu o divino sopro da vida, isto vivificou todas as partículas de pó / células, criou as veias e artérias, permitindo que o coração pulsasse o sangue com o ar /oxigênio por todo o corpo / carne, mantendo-o na condição de ser-vivo.
[11] רוח / Ruach / Vento, substantivo feminino. Aparece 363 vezes no Tanach. A mesma palavra é utilizada para se referir ao Espírito de Deus, dos homens, da vida, dos animais, e da respiração. בראשית / Bereshit (Gênesis 1.2, 3.8, 6.3, 6.17, 7.15, 22; 8.1; 26.35; 27.27; 41.38); שמות / Shemot (Êxodo 10.13; 31.3) במדבר / Bamidbar (Números 11.17, 25, 26, 31); שמואל א / Shemuel Álef (I Samuel 16.14, 23; 18.10); מלכים א / Melachim Álef (I Reis 21.5, 22.22-24; 18.45; 22.21); מלכים ב / Melachim Beit (II Reis 2.9; 2.15, 16; 3.17; 19.7); דברי הימים א / Divrei Haiamim Álef (I Crônicas 5.26; 9.24; 12.19; 28.12); דברי הימים ב / Divrei Haiamim Beit (II Crônicas 9.4; 15.1; 18.20-23; 20.14; 21.16; 36.22); אסתר / Ester (Ester 4.14); קוהלת / Kohélet (Eclesiastes 1.6; 3.19, 21; 12.7); איוב/ Ióv (Jó 4.9; 4.15; 7.7, 11; 6.4; 19.7; 27.3; 37.10); תהילים / Tehilim (Salmos 143.4; 147.18); ישעיהו / Ieshaiáhu (Isaías 26.9; 41.16; 42.5; 59.21); יחזקאל / Iechezkel (Ezequiel 3.14; 36.27; 37.5; 37.9; 39.29); דניאל / Daniel (Daniel 2.3; 4.9; 5.11, 14; 7.2, 15); יואל / Ioêl (Joel 3.1, 2); זכריה / Zachariá (Zacarias 5.9, 6.8; 12.10); מלאכי / Malachi (Malaquias 2.15; 2.16).
[13] בראשית / Bereshit / Gênesis 2.23: לזאת יקרא אשה כי מאיש לקחה־זאת / Lezot ikre ishá ki meish lakacha-zot. / Chamá-la-ei de Ishá (mulher) porque do Ish (homem) esta foi tomada”. Segundo a tradição judaica, a palavra אש (esh / fogo) recebe a primeira letra do nome de Deus: י (iod / i) e forma a expressão איש (ish) para representar o “adam” recém animado pelo sopro da vida. Em seguida, a palavra אש (esh / fogo) recebe a última letra do nome divino: ה (he) e cria a forma feminina אשה (ishá) para nominar a criatura recém extraída da carne de “adam”. Então, na união destes opostos manifesta-se a palavra יה / Iá (forma simplificada do tetragrama sagrado /יהוה / Ihwh, que é o nome de Deus). É a mesma expressão encontrada no nome do profeta אליהו / “Eliáhu / Elias” (אל / El / Deus + יה / Iá / o nome de Deus = “Deus é Iá” ou “Iá é Deus”). Esta palavra aparece no total de 45 vezes no Tanach, tal como em sua primeira aparição, em שמות / Shemot (Êxodo 17.16); ou na forma composta הללו-יה / “hal’lu-Iá / aleluia” (“louvado seja Iá”), conforme תהילים / Tehilim (Salmos 115.18).
[14]A palavra אש / esh (fogo) aparece 144 vezes no Tanach. E também אור / ‘or / ‘ur (luz / fogueira), que as vezes é sinônimo de fogo, aparece 158 vezes. De um modo geral, são fortes ícones que se referem à natureza de Deus, à sua aparição, à sua ira, ou aos holocaustos queimados em sua adoração. Algumas das principais referências: בראשית / Bereshit (Gênesis 1.3,4); / שמות / Shemot (Êxodo 3.2-6; 24.17); / דברים / Devarim (Deuteronômio 4.33, 36; 5.24-26; 9.3); / שמואל ב / Shemuel Beit (II Samuel 22.9); / ישעיהו / Ieshaiáhu (Isaías 2.5; 10.17; 29.6; 30.27,30,33; 45.7; 58.8,10; 60.20); / ירמיהו / Irmiáhu (Jeremias 4.4; 5.14; 21.12; 23.29); / יחזקאל / Iechezkel (Ezequiel 1.4-7, 13,14, 27,28; 8.1-3; 10.6,7; 21.31; 22.20-22; 22.31; 28.14-18); / תהילים / Tehilim (Salmos 4.7; 18.9-15; 21.10; 27.1; 43.3; 44.4; 97.3; 104.2,3-9); / דניאל / Daniel (Daniel 2.22; 7.9,10; 10.6).
[15]Segundo os Manuscritos de Qunran (קומראן), os essênios, que faziam parte de uma facção judaica, acreditavam firmemente que “Deus é Luz” e que eles eram os “Filhos da Luz”. Note-se que desde os primórdios, as únicas formas de luz / iluminação conhecidas eram a fogueira, lamparina, raio, relâmpago, incêndio, sol, e Deus – todos concebidos como manifestações diferentes do fogo. Então, é mais apropriado traduzir: “Deus é Fogo”; e o homem é “Filho do Fogo”.
[16] קבלה / Kabalá / Tradição mística do judaísmo. Também se dedica a decodificar os subtextos ocultos nas composições de certos ideogramas do Tanach.
[17] A letra “mem” (מ), quando é escrita no final de uma palavra apresenta uma forma diferenciada, denominada “מם סופית /mem sofit / mem final”, e fica assim:ם.
[18] O conceito de fogo e água, enquanto fatores coexistentes e interdependentes, explica porque a literatura hebraica poetiza tantos dualismos: homem e mulher, guerra e paz, pecado e santidade, criação e destruição, amor e ódio, sabedoria e tolice, corpo e espírito, bem e mal, luz e trevas, bênção e maldição, vida e morte... Tais elementos, em si próprios, também apresentam infinitas variações e nuanças: uma fagulha pode acender fogueiras, ou incendiar florestas; tal como a água pode saciar a sede ou provocar dilúvios. Além disso, um tem o poder de modificar o estado do outro: a ação do fogo pode aquecer e evaporar a água, sua ausência pode congelá-la; a água pode temperar e extinguir o fogo; e os dois juntos podem ser complementares na provocação de novos fenômenos, sejam bons ou ruins. Outro fator relevante é que a água existe para a terra (corpo), assim como o fogo existe para o ar (espírito) – o que significa dizer que, implicitamente, a expressão “shem” combina novamente os quatro elementos no ser. Tais pensamentos também coincidem com a ontologia de Heráclito: “Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia” (Fragmento 08).
[19] שמות / Shemot / Êxodo 1.22; 2.1-10.
[20] שמות / Shemot / Êxodo 3.1-3.
[21] שמות / Shemot / Êxodo 3. 4-6
[22]משה - O nome também vem da raiz verbal “masha” (tirar, extrair), porque ele foi tirado da água; ou de “mashe” (dívida, empréstimo), porque ele foi emprestado à própria mãe. Ambos os fatos estão narrados em שמות / Shemot / Êxodo 2.5-10.
[23] Em בראשית / Bereshit / Gênesis17. 1-5, Deus chama אברם /Avram (Abrão) e troca seu nome para אברהם /Avraham (Abraão). Em 17. 15-19, muda o nome de שרי (Sarai) para שרה (Sara). Observa-se que, em ambos os nomes, foi acrescentada a principal letra ה (he) do nome de Deus (יהוה / "Ihwh"), simbolizando, dentre outras coisas, um pacto, ou memorial da presença divina neles. Os cristãos traduzem-no, equivocadamente, como Jeová, Javé, Iavé. Ao observar o nome divino, “Ihwh” (יהוה), percebe-se que a primeira letra é o iod (י), que tem som de “i” (em hebraico nunca existiu letra alguma com som de “j”). Parte da confusão é por conta da transliteração feita do alemão (Jawé), cujo “j” tem o som de “i” para eles. Os brasileiros, por desconhecerem tal fato, lêem-no como se fosse o “j” em português. As outras vogais sequer existiram no alfabeto, que é estritamente consonantal. Devido à tradição de “não pronunciar o nome de Deus em vão”, os sons vocálicos foram totalmente esquecidos. Assim, o restante da pronúncia é inventado por meio de um tardio hibridismo linguístico com a palavra אדוני / “adonai”.
[24] Hashem (השם) significa “o nome”; ou “o lá” (aquele que está “lá” à frente, adiante). A letra he (ה), no início da palavra, indica o artigo definido. A expressão “Hashem”, no entanto, só começou a ser usada para se referir a Deus entre os séculos IX a XV, pelos ראשונים / “Rishonim” - os primeiros rabinos e estudiosos do judaísmo a comentarem o תלמוד / Talmud. Hoje os judeus utilizam-na, informalmente, a fim de não usarem o nome de Deus em vão.
[25] דברים / Devarim /Deuteronômio 4.24 diz assim: כי יהוה אלהיך אש אכלה / Ki Ihwh elohecha esh ‘ochla / Porque Ihwh, seu Deus, é fogo que consome. Em Devarim 9.3 confirma: כי יהוה אלהיך הוא-העבר לפניך אש אכלה / Ki Ihwh elohecha hu há’over lefanecha esh ‘ochla / Porque Ihwh, seu Deus, aquele que passa diante de você, é fogo consumidor.
[26] אלהי אברהם אלהי יצחק ואלהי יעקב /Elohei Avraham elohei Itzchak Elohei Iakóv / Deus de Abraão, Isaque e Jacó (שמות / Shemot / Êxodo 3.15).
[27] יהוה צבאות / Ihwh tzvaot / Senhor dos Exércitos. Há centenas de casos como estes em: שמואל א / Shemuel Álef (I Samuel 1.3; 4.4); תהילים / Tehilim (Salmos 24.10; 89.9); ישעיהו / Ieshaiáhu (Isaías 6.3, 5).
[28] “אהיה אשר אהיה / eheie asher eheie” – O verbo “ser” / estar” aparece duplamente conjugado na primeira pessoa do singular, no modo incompleto. As traduções cristãs, comprometidas apenas com a interpretação fundamentalista da ontologia de Parmênides, com a Septuaginta e a Vulgata Latina, traduzem a expressão “eheie asher eheie” ao tempo presente (“eu sou o que sou”), o que consiste num grave equívoco, por 5 motivos elementares: 1) No hebraico clássico nunca existiu o tempo verbal no presente; 2) Mesmo o hebraico moderno tendo adotado a conjugação verbal no presente, ela ainda não existe para o verbo “ser / estar”; 3) Nas outras 39 vezes em que aparece o verbo “eheie” no Tanach, os exegetas cristãos o traduzem ao português como “eu serei” / “eu estarei” – comprovando que não é correto conjugá-lo no tempo presente ou passado; 4) Não existe justificativa linguística, gramatical, contextual ou cultural para traduzir apenas o versículo 3.14 para o tempo presente, exceto por causa da inquestionável influência da ontologia parmenidiana levada a seus extremos; 5) A ontologia hebraica, do Movimento, aproxima-se mais à de Heráclito, sendo diametralmente oposta e incompatível àquela adotada pela Igreja Católica, que dogmatizou a Deus como um Ser “imóvel” e “estático”.
[29]ויאמר אלהים אל־משה אהיה אשר אהיה ויאמר כה תאמר לבני ישראל אהיה שלחני אליכם׃
A versão judaica, bilíngue, com base no referido texto massorético, traduz ao português da seguinte forma: E disse Deus a Moisés: “Serei O que serei. E disse: Assim dirás aos filhos de Israel: Serei enviou-me a vós” (“Torá – A Lei de Moisés”, de 2001, da Editora e Livraria Sêfer – em parceria com o Templo Israelita Brasileiro Ohel Iaacov, e com o Centro Educativo Sefaradi em Jerusalém). A “Bíblia Hebraica”, por David Gorodovits e Jairo Fridlin, de 2006, Editora e Livraria Sêfer, também traduz exatamente da mesma maneira que a anterior. Mas por falta de uma palavra, em português, que melhor corresponda ao sentido original da expressão “eheie”, sem precisar fazer uso de imensas explicações no rodapé, então, realmente, a tradução mais próxima ao sentido original ainda é o verbo “serei”/ “estarei”, na “primeira pessoa do singular, no “tempo futuro” – questão que será devidamente esclarecida mais adiante.
A versão judaica, bilíngue, com base no referido texto massorético, traduz ao português da seguinte forma: E disse Deus a Moisés: “Serei O que serei. E disse: Assim dirás aos filhos de Israel: Serei enviou-me a vós” (“Torá – A Lei de Moisés”, de 2001, da Editora e Livraria Sêfer – em parceria com o Templo Israelita Brasileiro Ohel Iaacov, e com o Centro Educativo Sefaradi em Jerusalém). A “Bíblia Hebraica”, por David Gorodovits e Jairo Fridlin, de 2006, Editora e Livraria Sêfer, também traduz exatamente da mesma maneira que a anterior. Mas por falta de uma palavra, em português, que melhor corresponda ao sentido original da expressão “eheie”, sem precisar fazer uso de imensas explicações no rodapé, então, realmente, a tradução mais próxima ao sentido original ainda é o verbo “serei”/ “estarei”, na “primeira pessoa do singular, no “tempo futuro” – questão que será devidamente esclarecida mais adiante.
[30] O verbo להיות / “lihiot” / pode ser traduzido como “ser” ou “estar”, o que significa basicamente a mesma coisa para os hebreus. Se alguém diz “fui verde”, então não se tratava de um verde permanente, mas de um estado temporário. Se outro diz: “serei verde”, é porque inda não é verde, evidenciando a mudança do ser. E ninguém diria “sou verde”, porque além de tal condição absolutista parecer inconcebível ao hebreu, sequer há o verbo no tempo presente. Para eles, “ser” e “estar” são igualmente temporais e transitórios. Então, mesmo que fosse correto – mas não é - traduzir o fragmento como “sou o que sou”, ainda assim isto teria o mesmo sentido que “estou o que estou”. Ou seja: longe de representar uma realidade plena e estática, continuaria simbolizando o movimento e a mudança do ser. O mesmo raciocínio se observa em relação ao verbo “ter”, que não existe em hebraico: Eles utilizam a partícula יש לי / “iesh li” / “existe para mim” (transmitindo a ideia de que “no momento está comigo, sob meus cuidados”), porque não consideram a possibilidade de “se apropriar” definitivamente de algo. Tais peculiaridades indicam que o pensamento, a língua e a cosmovisão hebraica não percebem nada como fixo, imóvel, imutável, definitivo. Por isso, o Deus dos hebreus sempre se manifesta instável como o fogo e a água, volátil como o ar.
[31] Atualmente é professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Uerj. É membro do PEC - Pólo de Estudos Clássicos do Estado do Rio de Janeiro. Coordena o NOESIS - Laboratório de Estudos em Filosofia Antiga da UERJ (www.noesisfilosofia.com.br). Faz parte do projeto CAPES/COFECUB atualmente em andamento entre o Centre Léon Robin de l'Université de Paris IV - Sorbonne e o Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense. Pertence ao Corpo Editorial da Revista Sofia (UFES), da Revista Anais de Filosofia Clássica (Laboratório OUSIA/UFRJ) e da Revista Ítaca (UFRJ). Tem experiência na área de Filosofia, sobretudo Filosofia Antiga, com ênfase em Pré-socráticos e Platão.
[32] καὶ εἶπεν ὁ θεὸς πρὸς μωυσῆν ἐγώ εἰμι ὁ ὤν καὶ εἶπεν οὕτως ἐρεῖς τοῖς υἱοῖς ισραηλ ὁ ὢν ἀπέσταλκέν με πρὸς ὑμᾶς / “E Deus disse a Moisés: Eu sou aquele que é. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: aquele que é me enviou a vós.” (Tradução: Izabela Bocayuva). A versão católica, a Bíblia de Jerusalém, também traduz no tempo presente: “Deus respondeu a Moisés: eu sou aquele que sou. E ajuntou: Eis como responderás aos israelitas: (Aquele que se chama) eu sou envia-me junto de vós.”. E a versão protestante, Almeida Corrigida e Revista Fiel, apresenta a mesma versão: “E disse Deus a Moisés: “eu sou o que sou”. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: “eu sou” me enviou a vós.”. E nenhuma outra tradição cristã traduz ao português em conformidade com o texto original, em hebraico, ou precisaria desconstruir o dogma helênico sobre a natureza divina.
[33] Por culpa de inúmeras questões deficitárias como esta, o תלמוד / Talmud narra: “O dia da tradução foi tão doloroso quanto o dia em que o Bezerro de Ouro foi construído, pois a Torá não poderia ser acuradamente traduzida”. Alguns rabinos disseram que “as trevas cobriram a Terra por três dias quando a Septuaginta foi escrita.”. Jerônimo, após ter comparado os manuscritos da Septuaginta com manuscritos em hebraico, afirma: “Seria tedioso agora enumerar as muitas adições e omissões que a Septuaginta fez” (...). “Os judeus geralmente riem quando ouvem nossa versão” (...). “Mas como nós devemos lidar com os originais em hebraico nos quais estas passagens e outras como estas estão omitidas, passagens tão numerosas que reproduzi-las irá requerer livros sem conta?” (Carta LVII de Jerônimo). O pastor João Ferreira de Almeida usou as línguas originais para sua tradução. Porém, ele mesmo, após a publicação da bíblia, em 1637, fez uma lista de dois mil erros nela encontrados – a maioria por conta da comissão holandesa, que procurou harmonizar a nova tradução com a versão já existente. Tudo isto confirma a necessidade de traduzir o Tanach com base na Crítica Textual, sem curvar-se aos interesses ideológicos da tardia tradição cristã.
[34] Conforme o ideário hebreu, o ser não está no passado, nem no presente, nem no futuro. Ele é algo em movimento e suas “ações” estão inteiramente desconectadas do sentido cronológico. Por isso, o “tempo verbal” está vinculado apenas à: 1) ideia de uma “ação completa” - aquela que foi totalmente executada e concluída (modo perfeito); 2) ideia de uma “ação incompleta” – o mesmo que ação continuada, que ainda está sendo realizada, que não foi plenamente completada (modo imperfeito). Porém, devido ao processo de intensa ocidentalização da hermenêutica dos textos hebreus, introjetou-se a concepção cronológica nos dois “tempos verbais” primitivos, misturando-os, confundindo-os, e traduzindo-os, popularmente, com o inapropriado sentido temporal de passado, presente e futuro.
[35] Qualquer verbo - em qualquer tempo e em qualquer língua - já demonstra “ação, movimento, mudança”.
[36] עצב / Atzav / Ídolo. Veja: תהילים / Tehilim (Salmos 115. 2-9; 135. 13-18); במדבר / Bamidbar (Números 12.4-9); הושע / Hoshêa (Oséias 13.2); איוב/ Ióv (Jó 10.7-13). O homem foi feito à semelhança de Deus. O que significa dizer que, antropomorficamente, o Deus dos hebreus também é semelhante ao homem: cria, fala, escuta, anda, visita, cura, guerreia, acompanha, promete, abençoa... num movimento eterno.
[37]O título aparece em três formas distintas, mas com o mesmo significado: 1) אלהים חיים / Elohim-Chaim / Deus-vida; 2) אל חי / El chai / Deus-vivo; 3) חי אלהים / Elohim chai / Deus-vivo. - Referências: דברים / Devarim (Deuteronômio 4.34); יהושע / Iehoshúa (Josué 3.10); שמואל א / Shemuel Álef (I Samuel 17.26, 36); מלכים ב / Melachim Beit (II Reis 19.4, 16); תהילים / Tehilim (Salmos 42.2; 84.2); ישעיהו / Ieshaiáhu (Isaías 37.4, 17); ירמיהו / Irmiáhu (Jeremias 10.10; 23.36 ); יחזקאל / Iechezkel (Ezequiel 5.11; 14.16, 18, 20; 16.48; 17.16, 19; 18.3; 20.3); דניאל / Daniel (Daniel 6.20, 26); הושע / Hoshêa (Oséias 1.10); זכריה / Zechariá (Zacarias 2.9).
[38] Também é um fato curioso que justamente os hebreus: Moisés, Jesus, Freud, Marx, Durkhein, Spinoza e Einstein tenham promovido o movimento de inusitadas possibilidades conceituais, causando insuperáveis revoluções no campo das concepções humanas.
[39] A “Ontologia do Movimento e da Mudança”, que surgiu, primitivamente, há mais de 2.500 anos, foi tão bem elaborada a partir das leis macroscópicas da natureza, que agora também ressurge com a imensa plausibilidade teórica de ciências como a Geografia, Estatística, Meteorologia, Cosmologia, Mecânica Quântica e a Biologia Molecular. Paradigmas como o Princípio da Incerteza, a Teoria da Relatividade, e a Teoria das Cordas têm revitalizado e ampliado o conceito de “Movimento” ao ponto de inspirar e motivar físicos renomados, como Fritjof Capra, Frank J. Tipler, Amit Goswami, a buscarem, inclusive, um novo elo entre a teoria e a mítica, entre a física e a mística.
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